Sexta-feira, 20 de Abril de 2007
MEDO?...
            Aquele grupo de combate chegou ao nosso aquartelamento. A rapaziada salvou das viaturas e o caminho certo foi o da cantina. Iam ser bebidas as cervejas “da ordem”, para tirar a poeira da garganta.
            Entre os graduados estabeleceu-se uma amena “cavaqueira”. Como não podia deixar de ser, o tema era Guerra.
            E então contaram-nos:eSTUDANTINA
            -Pois só te digo, meu caro amigo, que me fartei de rir.
…………………………………………………………………………………………….
            A coluna seguia em escolta a camiões civis, que vinham de Nóqui. Coluna bastante extensa, levava, em três jeeps militares, as metralhadoras pesadas, montadas em tripé.
            Era um grupo de combate o total de tropas e cinco camionetas civis.
            A poeira entranhava-se nos poros, por entre um calor intenso que os raios solares espalhavam sobre a terra.
Apesar das precauções habituais, a “malta” ia descontraída, fumando o cigarrinho e conversando. Todavia, com os sentidos alerta para o que desse e viesse.
            Naquela altura, era hábito dos “turras”, antes de iniciarem um ataque dispararem um tiro de pistola que servia d e sinal para os restantes elementos que compunham a emboscada, darem início ao tiroteio de flagelação. Havia história de que isso tivesse acontecido umas duas ou três vezes.
            Por isso mesmo, os homens do grupo de combate além de prescutarem ansiosamente a mata com os olhos, iam de ouvidos bem abertos à espera que surgisse o tal tiro.
            A coluna estaria a cerca de uns 45 quilómetros do nosso aquartelamento. Ao longe recortavam-se contra o horizonte os perfis dos morros cobertos de capim amarelo e de árvores.
            A estrada serpenteava por entre morros e planícies, de vez em quando, cortada por um pontão, sobre um riacho.
            Como a distância que separava a coluna do acampamento já era pouca, a descontracção era cada vez maior.
            Ao descer a encosta de um morro, do lado direito da coluna e nitidamente ouviu-se um tiro de pistola.
            Se um observador atento estivesse à distância teria visto que, no minuto seguinte, ninguém já se encontrava em coima das viaturas.
            Os mais retardatários eram os condutores civis e militares, com o problema de abrirem portas para saltarem.
            Após este tiro, caiu sobre todos um silêncio pesado, só cortado pela respiração dos homens.
            Todos os olhares se dirigiam para a mata à espera de localizar o inimigo emboscado. Nada. Silêncio.
            O chilrear dos pássaros voltou a escutar-se. Uns dois ou três minutos decorreram.
            Uma ordem de …”avance ao reconhecimento” por este lado, foi ouvida a meia voz. Neste preciso momento em que os nervos estavam sujeitos a uma tensão nervosa que fazia os homens suarem, e quando se iam a levantar, escutou-se nitidamente, vindo de outro lado da mata, um apito que rasgou os ares fazendo arrepiar…
            De uma das bermas da estrada junto ao terreno, uma voz clara, firme, disse:
            -For’ó árbitro!...
            Uma gargalhada surgiu, ofendendo com o seu quê cristalino os deuses da guerra. Logo a seguir, sem mais nenhum compasso de espera, começou o tiroteio de ambos os lados.
……………………………………………………………………………………….
            Tempos passados e o apito mais vezes se fez ouvir antes do tiroteio, e então toda a “malta” dizia:
            Fora o árbitro…
 
 

sinto-me:
música: Estudantina Universitária de Coimbra -Tunas

publicado por fercobanco às 19:13
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UMA NOITE DE PESADELO

Depois da explosão da mina que feriu o Teixeira, o “abre-picadas” como eu lhe chamava e após ter terminado todo aquele movimento e confusão, havia que pensar em evacuar os feridos.

            Assim se fez. Um dos grupos de combate fez escolta aos feridos. Foram evacuados, para a base dessa operação, para o Cuima. Na base da serra da Kanda, onde ela terminava, ou começava, o meu grupo de combate ficou emboscado, à espera… que os “turras” se fossem certificar dos resultados obtidos.

            O pelotão atingido montava a emboscada. O tempo passou. A tarde começou a cair, procurando o anoitecer. Seriam umas dezassete horas, quando o alferes mandou montar nas viaturas e regressar à base.

            À noite voltaríamos ao local. Rapidamente chegámos ao Cuima. Jantou-se. Voluntários se ofereceram para regressar ao sítio onde a mina explodira. De viatura avançámos até cerca de vinte quilómetros do objectivo. Aí, apeámo-mos das viaturas. A noite era negra. Viscosa. O cacimbo não deixava ver um palmo à frente do nariz.Se4ntiamos à distância os contornos da serra da Kanda. Impressionante, de estarrecer. Negra também como a própria noite, que nos cercava., fomos progredindo nas margens da estrada. Sentindo o camarada da frente, mas quase sem o descortinarmos. Sempre a andar.Com pressa em chegar ao local onde tinha rebentado a mina. Os ponteiros do relógio de quadrante luminoso indicavam que as vinte e três horas, já tinham acontecido há vinte e cinco minutos. Levávamos umas duas horas de caminho percorrido. O cacimbo começou a levantar-se. Notavam-se, agora, os camaradas da frente.

            Lembro-me que alguns caminhavam dormindo. Encostando as armas às costas do vizinho. Era uma sonolência bendita, na medida em que o cansaço não nos conseguia vencer. Expressamente proibido fumar. Lógico aliás! No entanto, talvez o fumo do cigarro nos ajudasse a vencer melhor o tempo. De repente, ouvimos nitidamente um apito longo, perto de nós. Instintivamente, deitámo-nos no chão. Ao longe um outro apito proveniente do facto de ter sido soprado um chifre de caça respondeu. Deitados no terreno, aguardámos os acontecimentos. Nada. Só a própria noite e os seus ruídos característicos nos responderam. Passaram-se cerca de quinze minutos. Levantámo-nos e a marcha continuou a caminho do objectivo. Alguns minutos decorridos, novo apito semelhante ao primeiro se ouviu. Novamente para o chão. À distância a resposta. Nessa altura já o cacimbo nos deixava olhar para o meio ambiente. Capim baixo lançava-se até à base da serra da Kanda, que ficava a uns seiscentos metros. Esse era o nosso lado esquerdo. Do lado direito, o capim ia misturar-se mais perto com as árvores. Núcleos de mata faziam desenhar, no horizonte visual, monstros indescritíveis, quais figuras fantasmagóricas de um arrepiante pesadelo.

            Mais tempo se passou. Novamente em marcha.Com os nervos em frangalhos, tensos. Dominados graças a um esforço titânico.Com uma vontade louca de abrir fogo para o capim.

            Os graduados tinham que se dominar e tentar dominar os soldados. O rastolhar das pequenas peças de caça provocava uma tensão arrepiante. Uma tensão que nos fez perder o sono e a noção do tempo.

            …Se ao menos um cigarrinho se pudesse fumar…Acalmava. Mas nem isso. Todas as atenções eram poucas. Havia que perscrutar o meio ambiente à espera, aguardando! Os passos quase que se não ouviam. Até a respiração era controlada, de modo a que não ajudasse a revelar a nossa posição. Tudo alerta.

~          De frente vem a voz sussurrada de:”Alto”. Ninguém se apercebia, sequer, que os relógios marcavam, nesse momento, quatro horas da manhã. Havíamos chegado ao local onde explodira a mina, no princípio da tarde do dia anterior. Rapidamente, os homens distribuíram-se pelos pontos estratégicos, que limitavam o riacho seco.

            Alguns ficaram de sentinela, outros tentaram dormir. Ninguém o conseguiu atrelado de água, que fizera explodir a mina ainda lá se encontrava, completamente desfeito como se um gigante possuidor de uma força poderosa, tivesse provocado o rasgar da chapa.

            Tudo no mesmo sítio. Da mesma maneira. Ninguém havia visitado o local. A manhã nasceu, bonita. Os que tinham montado segurança começaram a agitar os mais cansados. Tirando-os da semi – sonolência em que se encontravam.

            Na região limítrofe, foi feita uma pequena batida. A cerca de uns vinte metros do local onde nos encontrávamos, o cadáver de um “turra”. Abandonado com uma rajada de metralhadora nos intestinos. Estava encoberto pelo capim. Mais à frente e no “carreiro” que serviu para os turras s e desenfiarem, rastos de sangue demonstravam que tínhamos provocado, pelo menos, um morto e, provavelmente alguns feridos. Após essa verificação, comemos o “mata-bicho” e aguardámos as viaturas que nos viriam buscar, cerca das nove horas. Foi esta, talvez, uma das noites de maior angústia passada no norte de Angola.

 

 


música: Tchaikovski -Valse
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publicado por fercobanco às 19:07
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O ABRE-PICADAS, COMO EU LHE CHAMAVA...
   
         Apesar de tudo, aqueles vinte e cinco dias foram passados na mais sã camaradagem entre todos os elementos componentes dos dois grupos de combate.
            Tinham-se recebido ordens da base de operações, para regressar, logo depois da ponte reconstruída.
            Levantou-se o acampamento, recolheu-se o material nas viaturas e pusemo-nos a caminho. Felizes.Satisfeitos por regressarmos ao acampamento onde, pelo menos, havia uma refeição quente à nossa espera.
            Recebi ordens do comandante de pelotão, para que tomasse lugar na primeira viatura com a minha secção. Assim fiz. A meu lado o meu fiel “abre-picadas”, como lhe chamava. O pequeno Teixeira. Pequeno no tamanho, mas grande no seu comportamento de soldado. Calmo. Reflectido. Sempre pronto para as missões mais difíceis A nossa GMC arranca, e foi como se um sinal para que toda a coluna tomasse o andamento.
            Levávamos atrelado um depósito de mil litros de água. Em cima da viatura: mesas, cadeiras, móveis, espólio da nossa incursão em terras da serra da Kanda. Artigos apanhados aos terroristas. Várias colchas davam um ar garrido e alegre à coluna, como se fosse uma romaria. Romaria de homens de espingarda, de barba grande, cansados. Desejosos de regressarem à sopa de feijão quente, que o cozinheiro do acampamento preparava tão bem. Sim. Até porque as rações de combate já saturavam por terem que se comer frias, na maior parte dos casos…
            De repente, a coluna pára.
            A viatura, atrás da nossa, avariou. Descemos. Fomos ajudar a segunda viatura da coluna a retomar a marcha. Ah! Mas a tal GMC não queria andar. Parece que tinha jurado que nunca mais poderíamos comer descansados o tal puré de feijão quentinho que o 325 tão bem cozinhava.
            Lançou-se uma corda a um jipão e a coluna novamente se pôs em andamento, debaixo do sol, de um sol abrasador, quente, que prendia os movimentos, de um sol que emprestava à serra da Kanda matizes doiradas em reflexos das copas dos arvoredos. Olhei para trás. Vi aquela rapaziada, que tão bem conhecia, feliz, satisfeita, por voltar à base.
            Sem preocupações, apesar de sabermos que, à nossa volta, de um momento para o outro poderia começar o tiroteio, ou uma mina. Nunca se sabia.
            Todavia, cantava-se. Adivinhava-se o futuro. Um futuro que se deparava sorridente. Olhei para o Teixeira, o “abre-picadas” como lhe chamava. Disse:
            -Uf, que calor!
            O Teixeira sorriu. Olhou para mim e sorriu. Maquinalmente, levou a mão ao cachecol do camuflado e limpou uma gota de suor do pescoço. Ajeitou-se e colocou melhor a FN. Conversava-se.Toda a gente conversava. Por isto ou por aquilo. Só pelo prazer de falar. Só porque após vinte e cinco dias de mato, íamos dormir em camas, em colchões com lençois.
            Mais à frente, uma ligeira descida para um riacho seco, marginado por bambus.
            O condutor, com precisão, meteu o focinho da GMC em direcção ao riacho seco. Passaram as rodas da frente. As de trás. De repente, uma explosão. Gritos.Ai minha mãe! Ai meu Deus! Deus me ajude! Mãezinha querida!
            Fumo. Muito fumo negro. Negro como uma noite sem lua nem estrelas. Burburinho. Confusão. Ordens gritadas. Tiros. Rajadas. Dou por mim numa valeta.Ao lado da estrada. A meu lado vultos, ainda imprecisos, envoltos em fumo. No meio da estrada, corpos camuflados, manchados de vermelho. Um vermelho que se alastra. Olho mais acentuadamente. Um pouco mais calmo. Vejo o Teixeira, o “abre-picadas”, como eu lhe chamava, com o peito do camuflado desfeito, cheio de estilhaços, da mina.Pequeninos.Simples pontos incrustados no peito que arfava. Uma bota arrancada e só metade do pé. Sangue.Um dos testículos foi atingido.
            Sangue que banhava tudo aquilo. E gritos, dele, de todos. Uma voz de comando dizia:
            -Avance ao reconhecimento! Siga pela direita.
            Rajadas de metralhadoras tiros que iam. De tiros que vinham. De balas que zuniam por cima das cabeças. A bolsa dos medicamentos espalhada pela estrada. Tintura no chão. Naquele chão que absorvia e misturava tintura e sangue. Naquele chão sagrado pelo qual nós sofríamos. Nos batíamos. Naquele chão que magnânimo recebia os lamentos dos feridos, como que querendo levá-los às suas entranhas. Como que querendo guardar esse segredo do chamamento por uma mãe. Por Deus, por Nosso Senhor, pela Virgem.
            As pragas sucediam-se.Fortes.Viris.De homens ainda crianças. De homens de vinte e poucos anos, pretos, brancos, mestiços.Todavia, de homens que envergavam a mesma farda. Camuflados iguais. Sujos de poeira, de dormir no chão, de suor.
            Tal como tudo começara, tudo acabou. Um silêncio pesado, cruel, frio, que se abateu sobre nós. Sobre a Natureza. Até as aves se calaram. Nem as folhas das árvores se mexiam. Até o vento aquietou num silêncio de túmulo. Alguns minutos assim de silêncio. Como se o mundo tivesse acabado.
            Começaram a levantar-se os gemidos. Dos feridos. Dos que eram socorridos pelos enfermeiros. Por um que deitava sangue pelo nariz e tinha um braço esfacelado. O pior era o Teixeira, o mais ferido.
            Mas no entanto, aquele que tinha um sorriso nos lábios e nas mãos o crucifixo de ouro, que trazia ao peito, esse era o Teixeira, o “abre-picadas” como eu lhe chamava.
 
 

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publicado por fercobanco às 01:17
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Quinta-feira, 19 de Abril de 2007
O NORDESTE...DE NOME PRÓPRIO...
Há por vezes factos que se retêm na memória durante muito tempo, apesar dos anos e das vicissitudes que a vida nos apresenta. Todavia, muitas vezes torna-se necessário fazer um certo esforço para nos recordar desta ou daquela personagem que connosco viveu determinados momentos.
Não conseguimos recordar-nos da personagem. ou melhor do seu nome, porém, lembramo-nos que era um engenheiro das Obras Públicas que estava colocado na ´
Área de São Salvador do Congo.
Certo dia, mais precisamente no dia em que chegámos ao aeroporto da capital do distrito do Zaire, e ao desembarcarmos do avião, fomos colhidos por uma notícia que profundamente nos tocou. Tinha sido ferido numa perna com uma rajada de metralhadora dos terroristas o engenheiro das Obras Públicas a que atrás nos referimos.
Quisemos saber pormenores e logo fomos informados de que tinha sido o pelotão a que pertencíamos, que houvera caído numa emboscada que os “turras” tinham montado na estrada que ligava São Salvador a Ambrizete. O resultado dessa emboscada tinha sido o ferimento produzido no civil que necessitando de se deslocar a um acampamento das Obras Públicas naquela estrada, aproveitou a nossa coluna.
Depois tivemos a oportunidade de saber através da boca do comandante de uma secção desse pelotão, o que verdadeiramente se tinha passado.
*
Deviam ser talvez umas quatro horas da manhã quando a coluna se pôs em andamento para escoltar algumas viaturas civis que se dirigiam para o Ambrizete. Como sempre, a paisagem era monótona.
Capim de um lado. Por vezes grandes núcleos de mata. Montes. Riachos. Sobretudo capim seco. Muito capim. Dois morros formando subidas e descidas que as GMC se viam desesperadas para vencer com pouca velocidade, como não podia deixar de ser. Grande esforço dos carros. No pessoal, grande expectativa. Nervos tensos à espera do pior. Contudo, nesse local, era hábito passar-se descontraidamente. Nas calmas, segundo a expressão usada. De certo modo o ambiente nas viaturas era à vontade. De descontracção. De repente, uma rajada de metralhadora. Saltos das viaturas para o chão. Para a valeta. De armas aperradas. Prontas a disparar. Tensas. Armas que conjuntamente com os homens constituem um todo. Um corpo único. As armas são qualquer coisa de que um militar não se separa na mata, ou em operações nem para fazer um dos tais chamados passeios higiénicos. A FN e nessa altura tão querida para um homem como a mãe ou namorada que estão longe. Algumas até chegam a receber os seus nomes.
Nomes em homenagem a esses entes queridos, que, à semelhança de uma mãe, também velam pela vida do soldado.
O Nordeste, perdão, eu vou apresentá-lo:
- O Nordeste era o Furriel Enfermeiro da Bateria. Era tão Nordeste como o próprio nome. Sempre alegre. Sempre com a cabeça no ar. Mas calmo. Muito calmo. Seguro dos seus actos. Das suas acções. Sabendo o que tinha a fazer. O Nordeste, dizia eu, debaixo do fogo cerrado. Já nessa altura bastante cerrado saltou do jipe e dirigiu-se com a bolsa dos medicamentos para o local onde o Engenheiro se encontrava deitando muito sangue do ferimento. Mas sem lamentos. O Nordeste, calmamente, sabendo o que fazia e debaixo de fogo intenso, começou a aplicar os primeiros curativos estancando a hemorragia, com um garrote. Enquanto isto, os restantes homens deitados na valeta ripostavam ao fogo dos “turras”.Há uma secção que avança ao reconhecimento. Há as viaturas deixadas na estrada. Algumas com os motores ainda a trabalharem. Uma com o vidro furado no local do condutor. A viatura da frente. Todavia, o projéctil já não encontrara no local o alvo a que era dirigido. Homens já metidos na mata tentando fazer um reconhecimento. Entretanto o tiroteio que durara escassos minutos tinha acabado. Como sempre o silêncio caiu sobre a terra. Sobre os homens. Sobre a natureza. Até as aves se calarem de comum acordo, respeitando aquele desencadear de fúrias humanas.
 
*
Mais tarde soubemos que esse engenheiro tivera a sua perna salva graças à intervenção pronta e eficiente do Nordeste, de nome próprio, notem.

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publicado por fercobanco às 20:54
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VEJAM COMO SOU FELIZ...

Salvo erro, porque fui à consulta externa no Hospital Militar, meteram-me na mão uma guia de marcha e, no aeroporto de São Salvador, tomei lugar no Nord Atlas, que me levaria a Luanda.

Aí a expectativa era grande.Imaginem::-Ir rever Luanda.Ir lá passar uns dias.Mesmo que se tratasse de ir ao médico.Nada importava.

Só o ir ver Luanda contava.

Do horizonte surge a gigantesca figura do Nord Atlas.Faz-.se à pista.Uns metros andados, por entre o ensurdecedor barulho dos motores.

A velocidade que abranda.Docemente,para no parque de estacionamento.A poeira levantada pelo "monstro", começa a poisar sobre nos.Todos se sacode.Param os motores.Abrem-se às portas e,detrás, sai a rapaziada.Camaradas que vinham de Luanda para aquela região, regressando às suas unidades, depois de umas férias, ou por qualquer outro motivo, até semelhante ao que me levava a Luanda.

Depois é a tripulação do " cama-couve-do-ar", que abandona a carlinga.Trocam-se  sdaudações.Aqui e ali rodas de militares que conversam.

Para um observador atento,as expressões daqueles que falavam de Luanda diziam tudo.Falavam por si.Deixavam antever as belas manhãs de praia e os passeios nocturnos ou o "fino" da Biker, ou dfo Polo Norte, ou do "rafiné" lanche das cinco na Versailles, ou ainda o esquecimento nos braços de uma mulher.

O quadro tornava-se num aperitivo para os que iam, ou no sabor desesperado do desejo para os que não iam.

Diverso pessoal procedia à descarga do Nord Atlas. Uma carga absolutamente idescritivel saía da "barriga" do avião.Ou eram frescos, ou carnes, ou jornais, ou material de guerra.Um "brique à braque" extraordinário se foi amontoando nas GMC e nos jipões, que ali se encontravam.

Depois era a partida: abraços, recomendações. As portas, que se fechavam, davam origem ao levantar de braços a dizerem adeus. Aqui ou além, uma correcta continência, cumprimentava este ou aquele graduado.Simultâneamente os turbo-reactores são experimentados em conjunto com os motores do Nord. Faz-se à pista.No rosto dos que ficam o intenso desejo de irem.Acelerações fortes definem a partida. A pista corre debaixo de nós. O 2focinho" do avião levanta-se para o ar.Lá em baixo tudo foge para trás.Tudo fica pequeno. Os homens e as casas.As nuvens são agora a meta.Lá dentro um barullho ensurdecedor, misturado com os mais diversos cheiros.No exterior as nuvens sucedem-se.Há que esperar. Lá em baixo vão surgindo povoações, sanzalas abandonadas, pantanos, rios que serpenteiam por entre a planície, morros aqui e além, extensões enormes de mata, extensões enormes de capim, estradas de um castanho-terra descrem curvas e contracurvas.Umas vezes desaparecem na mata, para voltarem a aperecer à frente.Dentro do Nord já se conversa.Fuma-se.Passa-se o lenço pelo rosto limpando o suor.O suor provocado pelo calor.Há quem enjoe.Há até quem vomite.Pergunta-se aos tripulantes:- Oh, amigo!Falta muito?...

Surge lá em baixo uma configuração diferente do terreno. É um terreno cor de cinza.Logo alguém diz:-Estamos sobre o litoral.Daqui a pouco vemods o mar.

E dando razão a quem falou, o mar beija as areias da praia lá ao fundo, as ondas repetem-se, como se dentro  desse enorme "lago" alguém tivesse deixado cair uma gigantesca pedra.Em determinados pontos, conseguimos ver o fundo do oiceano juntà praia.Na linha do horizonte mistura-se o azul do mar com o cinzento esbranquiçado das nuvens, não se distingindo onde acaba o mar e começa o céu.

Por baixo de nós a costa.Sempre a costa, até Luanda.

- Olha ali!

E aponta-se. Todos olham para a referência dada pelo indicador.Lá está o Cacuaco.Depois algumas zonas escarpadas sobre o mar.Por fim surgem os bairros periféricos do aeroporto.Antes, havíamos sobrevoado a Fortaleza, a Baía, a Ilha, a Marginal e os prédios. Os prédios de ferro e cimento. DCepois surge o  no smoking."Não fumar".O furriel mecânico, diz:-Não saiam dos vossos lugares.Lugares de "suma-pau".

Lugares que eram acima das caixas. Lugares em bancos corridos  de lona de um e doutro lado do avião.

Começamos perdendo altitude a caminho da pista. Os ouvidos zunem.A diferença d e presão causa o fenómeno.A pista aproxima-se, negra, de asfalto.Uma louca correria.Paragem junto à splacas da base aérea.Depois as formalidades de desembarque.Formalidades puramente militares.

*

Um táxi que espera...Para onde?...

-Leve-me...

Lá dizemos o local, e aí vamos desfilando pelas ruas da cidade.Primeiro a Avenida do Aeroporto.Depois a Mutamba, loucpomovimento.Atravessamos a <"capital" de Luanda.Bichas de gente à espera do auto carro.E olhamos.Olhamos para o ar.Para ver os prédios altos.E surgem os polícias sinaleiros empertigados na "peanha".Com movimentos enérgicos a dirigirem o trânsito.Ruído de gentr que atravessa as ruas, de automóveis que tyravam, dos ardinas a anunciarem:

- A Provincia dÀngola...Olha o Comércio...Oh patrão sai uma graxa?...

Pensei que reparassem em mim, no meu camuflado.Ninguém vê.Todos olham para dentro.De boca aberta, vejo o perfil de uma mulher bonita.Uma mulher que atravessa a rua.Num passo elegante.Altiva.DE negros cabelos caídos sobre os ombros.Alguém lhe diz um "piropo".Outro alguém ri....

Acordo de repente.Do meu sonho acordado.E dá-me vontade de ngritar, e a todos dizer:

-Vim do Norter.Estou em Luanda.Olhem para mim.Vejam como sou feliz!...


música: P.I.Tchaikovsky
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publicado por fercobanco às 15:58
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Quarta-feira, 18 de Abril de 2007
De ventre dilatado...Parasitas e vermes na cabeça...

Rompeu a manhã.Com o nascer do dia, começou a notar-se o movimento dos homens prontos a seguir viagem.

Todos sabíamos que no local onde nos encontrávamos, já tinham sido detectados movimentos dos "turras".Aliás, o objectivo era estabelecer contactos.Se possível flagelá-los.

Com mira nessa ideia, começámos a nossa deslocação sempre protegidos pelas copas do arvoredo, sempre na orla da mata de maneira que à distância não pudéssemos ser descobertos.Entre todo o pessoal, instintivamente, estabeleceram-se distâncias de modo a que uma rajada de metralhdora não pudesse causar muitas baixas.

O camuflado misturava-nos com o meio ambiente.Fazia-nos passar despercebidos.

Aproximamo-nos do limite da floresta.Ao longe, os morros repetiam-se.Nas "linhas de água" a vegetação era mais verde.No cume, de alguns deles,havia denso arbusto que se espriguiçava  pela encosta, misturando-se com as árvores.Espectáculo quase sempre igual até onde os nossos olhos alcançavam."Antro" inimigo a protegê-los extraordináriamente.

Para além disso, todo o pessoal tinha consciência de que era necessário uma camuflagem eficiente, aproveitando a configuração do terreno.

A progressão continuou, calma, precisa,segura.Na vertente de um outro morro, que nesse momento comecáramos a descer, viam-se ao fundo as paredes de "adobo" do que havi sido uma "sanzala".

Algumas dessas "cubatas" ainda tinham o telado de capim.Temeu-se a possibilidade de que ali estivessem aquartelados os "turras".

Com calma, os homens obedeceram aos gestos do comandante dos grupos de combate e as secções começaram a progredir para um envolvimento da "sanzala".

Os sessenta homens, de armas aperradas, foram progredindo no terreno com todas as cautelas necessárias.Pouco a pouco a distância que nos separava da aldeia era vencida.

A cerca de unstrinta metros do capim, todos pararam, de dedo no gatilho, com os olhos postos nas "ruas" da aldeia, prontos a fazeren fogo, s e a ordem surgisse.

Algumas palmeiras limitavam a "sanzala", junto ao local mais próximo da "linha de água".Para ali convergiam,também, as nossas atenções.

Escassos minutos de espera, num silêncio total.Só o bater das folhas das árvores e os insectos eram ouvidos.Nada mais!O resto era tudo silêncio.Um silêncio que normalmente precede o tiroteio.

O comandante levanta o braço, e as secções da frente comecaram a avançar com os homens agachados, mas prontos a abrirem fogo.Uma pequena corrida e um dos soldados sai do capim, para a protecção da primeira cubata sem tecto.Outrop lhe seguiu o exemplo.Ainda outro e mais outro.Enquanto uns saíam do capim para dentro da aldeia, os outros iam, com movimentos furtivos, avançando de cubata para cubata, com os nervos tensos.DEbaixo de uma excitação sempre crescente.

Lá  no meio da sanzala, notou-se a pegade de um homem, pegada muito recente.Noutros lugares, outras de crianças, de homens e de mulheres certamente.

A tensão, provocada pela expectativa, era cada vez maior.De repente, surge a correr de uma das cubatas, num cacarejar maldito, uma galinha.Instintivamente, as armas viraram-se para o local.Um dos homens avançou.Lá dentro uma criança preta, de ventre dilatado e ranho no nariz, olhava para nós.

A imundície do local obrigava-nos a fechar os narizes, enjoados.Excrementos de aniomais domésticos em pestavam o ar.Era um rapaz.Um rapaz que aparentava uns cinco anos.Estendeu-nos os bracitols magros, cobertos por crostas de porcaria cinzenta.Todo ele perecia um esqueleto revestido de pele.A única nota discordante desse apectocadavérico era o disforme e grande ventre, que ostentava com dificuldade.Na negra cabecita os vermes e os parasitas passeavam.

Tudo isto se fazia acompanhar do zumbido das moscas que ora  tocavam pousando na porcaria, ora voavam para cima de nós.

Entretanto, lá for, continuava a batida à procura de mais gente.A linha de água, que marginava a aldeia, tinha recentes pegadas.Um caudal não muito grande era atravessado por um tronco que ligava as duas margens desse riacho.

Mais pegadas demonstravam que ali tinham eestado homens.Uma batida do outro lado da margem não revelou ninguém.

Progrediu-se, então, na margem esquerda do riacho, saindo da "sanzala" a caminho de uma mata mais densa, um carreiro ligava-a a essa mata.DEvidoàs chuvas do dia anterior, a lama abundava.Enquanto uma secção reforçada ficou a guardar a "sanzala", o resto do pessoal caminhava lentamente e com precaução a caminho do arvoredo.Uns numa margem, outros noutra.

Desembocámos numa clareira interior, com plantações de mandioca, ginguba e tabaco, além d e milho.Eram lavra da aldeia de que os "turras" se serviam para os reabastecimentos.

Tal local tinha servido, com certeza, de refúgio ao inimigo.As populações da "sanzala" teriam fugido, ao notarem a nossa aproximação, deixando uma criança abandonada.Assim acontecia, com frequência.Não era caso "virgem".

Ali permanecenos mais dois dias, transformando a "sanzala" em improvisada basede operações dce onde partíamos para diversos reconhecimentos.

A tensão era grande, já porque essa guerra, psicológica, o justificava.Em todos, a certeza de que o local foi base dos "turras".A aproximação, os vestígios deixados pelo inimigo, a criança abandonada, tudo isso nos levava a um estado de alma indescritivel.

Aquela criança abandonada transformou-se para nós em mais um motivo de ódio pelos "turras".

Estávamos em guerra há poucos anos.Ainda se desconheciam pormenores que hoje são lugres comuns nesta guerre imposta.

E a verdade é que,a maior parte dos homens que compunham a minha unidade ou eram de Angola, ou estavam cá radicados desde crianças.

O pretito, que encontrámos,comeu sofregamente as bolachas e o concentrado de figo e de "ginguba", que fazia parte  das rações de combate.De olhos Esbugalhados pela fome, aguardando avaramente o que lhe faltava comer, olhava para nós.De nariz sujo e olhos lacrimejantes.Por vestuário só um calção qiue devereia ter sido cinzento, mas que agora, todo roto e cheio de goirdura, era completamente negro.

Durante os dias que ali nos mantivémos, nem um único contactoi s eestabeleceu com o inimigho ou com quem quer que fosse.

Na retirada a aldeia foi destruida.A "lavra" também.Queimadasas cubatas para que não voltassem a servir de abrigo aos "turras".

Àdistância quedámo-nos a olhar.Em todos nós uma revolta interna surgiu contra quem era capaz de abandonar à sua sorte uma criança de cinco anos.

O próprio miúdo, at´

onito,deixava transparecer no olhar uma interrogação, que nós adultos não conseguimos decifrar.

 


música: Glen Gould & Leon
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Terça-feira, 2 de Janeiro de 2007
O céu era negro
Minutos depois, o comandante dos dois grupos de combate informava os comandantes de secção que o «alto de descanso» terminara. O céu, agora já negro pelas nuvens carregadas de água, ameaçava chuva a todo o momento. A «meia voz», os comandantes de secção dizem aos homens: - Vá, toca a levantar… - Deita fora o cigarro… - Não fala…vamos lá a pôr as armas em posição de fogo… - Cautela c’o capim… - Daqui p’ra a frente há «turras» …muita atenção… Lá detrás e de boca em boca, vem a ordem do comandante da coluna: - Em frente…não quero barulho…atenção à mata… Ao mesmo tempo, impulsionada pela ordem de comando, a coluna começou a movimentar-se. À frente ia um batedor afastando o capim, da altura de um homem, que se entrelaçava, vergado pelo peso do ar africano. Era necessária muita atenção para as minas contra pessoal. Um simples descuido, ou o afastamento brusco de um capim, poderia provocar a explosão de uma dessas armadilhas, se existissem. O céu negro fazia descer sobre a Natureza e sobre os homens, que naquele momento ali transitavam, um sentimento de enorme respeito e sobretudo de ansiedade. Nos rostos notavam-se as marcas vincadas da importância do momento presente e do seu significado. Todos tinham consciência de que se tornava necessário acabar com aquele acampamento de «turras», que se tinha assinalado no ponto X da carta. Tal acampamento era o ponto de partida do inimigo para incursões na zona da nossa bateria. Dali para acampamentos provisórios em locais próprios para emboscadas às colunas. Era preciso acabar com aquela situação. Fora este o objectivo. Havia em todos a certeza de que os contactos com o inimigo seriam estabelecidos. Todos os homens se inclinavam um pouco para a frente lançando os olhares sobre o ambiente e com a arma em posição de reacção imediata à emboscada.Ao mínimo indício de perigo, a acção seria pronta. A ameaça de chuva transformou-se de repente em certeza. A água caindo do céu em verdadeiras bátegas. Instintivamente, os homens viraram para o chão os canos das FN. Levantaram-se as golas dos camuflados e o quépi foi melhor «enterrado» na cabeça. A mão esquerda ia sobre a câmara da FN para proteger da água que caía. O dedo indicador, da mão direita, exercia um ligeiro toque no gatilho. Quase uma carícia. Um afago lento, doloroso, pronto a transformar-se em forte pressão que desencadearia o estrondo das metralhadoras. No meio de todo este movimento dos homens, o capim, tão alto como nós, impulsionado pela força do vento fustigava-nos o rosto, os braços e o corpo. Lentamente, a coluna progrediu em direcção à mata no platô do morro. A determinada altura, o comandante de pelotão fez sinal de alto e mandou as secções disporem-se para um envolvimento de entrada na mata à vista. Vagarosamente, as secções formando uma meia-lua vão progredindo em silêncio e sempre fustigadas pela chuva que caía. Tudo tinha que ser feito com precaução, para que os nossos movimentos não fossem detectados por possíveis vigias dos «turras» instalados na copa do arvoredo. O outro grupo de combate ficou em posição de espera. As secções dos extremos, do primeiro grupo de combate, avançaram um pouco mais e lentamente começaram a passar do capim para a orla da mata, homem por homem, numa rápida corrida. Sempre agachados. A chuva teimava em cair, em molhar os camuflados e a roupa interior. Por outro lado, o barulho da água, caindo, abafava os passos dos homens. Tomadas as posições na orla da mata, seguiu-se uma pausa. Pausa da expectativa, de ansiedade, de extraordinária atenção. 0 O tempo continuava a correr. Cada vez mais devagar. Sem barreiras no espaço. Sem a preocupação da intensidade dramática que ali se vivia. Todos agachados, na orla da mata, prendiam a respiração tentando ouvir o eco dos próprios passos. Nada se repetia, excepto o matraquear no terreno da chuva que levantava partículas de terra húmida. De terra com cheiro próprio. Nesse compasso de espera, aguardava-se a possível reacção do inimigo. O tempo continuou a correr. Nada aconteceu. Nem o próprio meio ambiente se alterou. Apenas se escutavam os barulhos próprios da mata. Então, o comandante de grupo de combate mandou avançar com todas as precauções: - Devagar! Ocultando dentro do possível o corpo atrás das árvores. Na mata, já a chuva não castigava tanto os corpos, totalmente encharcados. As copas do arvoredo ofereciam mais protecção. As botas levantavam a água que era chapinhada pela lama, agarrada às solas. As pegadas ficavam impressas no terreno. Deixavam bem marcado o trajecto dos homens. Progredia-se lentamente até ao interior da mata. À procura do possível acampamento terrorista. A chuva caindo, por entre as árvores oferecia um espectáculo belo, como se de raios solares se tratasse, em colunas diagonais, de um cinzento diferente. Percorrida toda a mata até à orla oposta que marginava o princípio da nova encosta, nada se viu. Nem sequer rastos recentes de que ali tivessem estado «turras» acampados. Um compasso de espera para descanso e, entretanto, a nós juntou-se o outro grupo de combate. Dentro da mata, mas junto à orla, foi montado o acampamento para essa noite. Nada de barulhos. Nada de cigarros. Nada de fogo. Os panos de lona serviram para nos abrigarmos da chuva que, impiedosa, teimava em cair alagando tudo e todos. A tarde cinzenta, muito embora fossem umas dezasseis horas, mais parecia noite cerrada. A chuva nessa altura abrandou. O céu continuava escuro, carregado de nuvens negras. Uma das secções localizou um trilho de «turras» por entre a mata. Foi montada a segurança e preparou-se a emboscada que surpreenderia os possíveis transeuntes. Entretanto, a tarde deu lugar à noite. Abriram-se as rações de combate. Comeu-se a única refeição desse dia. O almoço e o jantar de uma só vez, sem barulho, discretamente. Os pingos de chuva teimavam em cair, espaçados, poucos. O manto negro da noite cada vez se estendia mais sobre a terra. Tiritava-se de frio, por causa dos camuflados molhados. Foram designados os turnos de sentinela. Os homens enroscavam-se melhor nos panos de tenda. O silêncio voltou.

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publicado por fercobanco às 19:46
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Quinta-feira, 7 de Dezembro de 2006
PRINCIPAIS ACTORES - SEIS DEZENAS DE SOLDADOS

 

As viaturas chegaram ao lugar previamente combinado. Daí para a frente tudo poderia acontecer. O pessoal desceu e preparou-se para dar início à caminhada.

Estávamos a cinquenta quilómetros da nossa base. O meio ambiente, aqui, apresentava-se diferente. A estrada, onde as viaturas tinham estacionado, marginava um morro, quase no seu vértice, lá ao fundo a paisagem era surpreendente. A configuração do terreno fazia os homens sentirem-se pequenos perante a imensidade da obra de Deus. Começámos a descer o morro depois da estrada ter sido abandonada. Descíamos com a ajuda do capim tão alto como os homens. Chegámos ao fundo. Seriam umas nove a dez horas de uma manhã que apresentava o sol na sua plenitude. Os homens suavam. O calor começava a fazer – se sentir com mais intensidade. Um dos homens levou a boca ao cantil. Como se fosse um sinal combinado, alguns imitaram o gesto. Toda a gente se encontrava parada aguardando instruções.

Os dois comandantes de pelotão conferenciavam. Passados alguns minutos as ordens surgiram num… «vamos por aqui» …

Instintivamente os homens, agrupados por secções, começaram a formar uma longa «bicha» com intervalos mais ou menos regulares entre todos. A enorme fila começou a palmilhar o terreno constituído por uma planície, em direcção a um ponto determinado que tal como se fosse os olhos de um hipnotizador parecia atrair aquela força de combate. Ao longe divisavam-se montes cujas bases apresentavam florestas densas, quais couraças, impenetráveis aos mais íntimos segredos.

            Num passo elegante com a arma colocada debaixo do braço, os homens formavam um todo com o pensamento posto na operação que acabara de ter início no momento em que fôramos «largados» na estrada.

            A disposição, de um modo geral, era estupenda, mas, com todos os sentidos alerta para o que pudesse surgir.

Lentamente, a coluna foi-se aproximando dos morros. Começou então a escalada do primeiro. Para um observador, colocado à distância, que no momento olhasse para a encosta, nenhum movimento de tropas se registaria na sua retina porquanto os camuflados faziam com que os homens em andamento se confundissem com a Natureza.

A subida continuou à custa de grandes esforços sísmicos tempos em tempos os homens levavam à boca o cantil, bebendo sofregamente a água, que havia perdido o seu sabor, em virtude dos comprimidos desinfectantes que se haviam dissolvido água era quente, quente em virtude do sol que nesse momento abrasava. Sol impiedoso que fazia os homens suar nesse percurso a caminho do ponto X, onde se presumia existir um «quartel-general e de reabastecimentos» terrorista.

Progressivamente o morro era escalado e começaram então a notar-se, recortados contra o horizonte, as silhuetas dos componentes daquele grupo de combate.

Depois de todos terem subido, os comandantes dos dois pelotões ordenaram um pequeno «alto» para descanso. Alguns homens tomaram posições de defesa imediata, a fim de velarem pela segurança dos seus camaradas.

No «platô» do morro, a uns duzentos metros do local onde nos encontrávamos, existia uma mata que se prolongava pela encosta contrária à que havíamos escalado.

Foi para aí que as atenções convergiram, transparecendo no olhar de quase todos os homens o respeito que nos impunha aquele arvoredo.

No entanto, de um modo geral, a calma transparecia em todas as atitudes dos sessenta e poucos homens.

Alguns minutos de conversa marcaram o tempo de descanso numa primeira fase da nossa caminhada.

Entretanto, o Céu cobria-se de nuvens prenunciadoras de chuva. Nuvens cinzentas. Nuvens que, impelidas pela força do vento, tapavam os raios do sol, de um sol quente de Angola. Esse movimento das nuvens lembrava ocorrer de uma cortina de teatro a fechar o primeiro acto daquela cena, em que eram principais actores seis dezenas de soldados.


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Sábado, 22 de Julho de 2006
Rumo ao local X da carta…

 

O ambiente na messe de sargentos era de verdadeira boa disposição. Trocavam-se impressões sobre os mais diversos e variados assuntos. De repente, há um «cochichar» entre a «malta» e começa a correr o boato de uma operação a realizar no outro dia. Lá fora, a noite caía sobre o acampamento começando a habitual ronda entre os postos de sentinela no meio da «algarviada» dos insectos.

- Qual é o pelotão?

- Para onde é a ida?

- Actuaremos ao nível de Infantes ou de Artilheiros?

- Bem meus amigos, constou-me! Nada há de concreto!

É nesse momento que a ordenança entra e diz:

- O nosso capitão quer os homens do terceiro e quarto pelotões reunidos dentro de um quarto de hora em frente à secretaria, na parada. Manda chamar também o nosso primeiro-sargento!

- Ora ai está! Eu não vos disse? É certo. Temos operação.Os comandantes de secção daqueles pelotões saíram em direcção às casernas.

- Atenção ao pessoal do terceiro e quarto pelotões! Formar em frente às camaratas…T`á andar!...

- Mexe-me os pés rapaz…

- Sim senhor meu sargento, já t`ou a ir…

E a algazarra surge. Os soldados trocam impressões…

- O que será?

- Temos trabalhinho…Cheira-me a esturro…

- Oh pá. Tá-se mesmo a ver que temos passeio. É como «gente grande» …Vais ver…

- Pois é… Vamos ter «farra» …

A conversa alastrava-se…Surgiram as mais diversas hipóteses sobre o que se estaria passando…No entanto, o pessoal lá foi formando, e, cinco minutos depois, Toda a gente se encontrava em frente das casernas, logo a seguir chegavam os comandantes dos dois pelotões e o capitão…

- Atenção! Sentido!...Dá licença meu capitão?

- Sim senhor, mande descansar!

- Descan…sar!...À vontade!

Pela cara daqueles homens passou uma expressão de interrogação. Que estaria para acontecer? Certamente que mais uma operação se iria realizar.

E o capitão começou a falar:

Meus caros: amanhã temos festa! O pessoal deve preparar-se para uma operação de alguns dias. Vamos fazer uma batida no sítio X. Como sempre, lembro-vos a vossa condição de Artilheiros. Como sempre, conto convosco! Depois, irão receber as rações de reserva e as munições…A saída está prevista para esta madrugada. Os condutores devem fazer a verificação das viaturas. O nosso furriel Coelho proceda aos abastecimentos de gasolina e gasóleo de todas as viaturas. Os senhores comandantes de pelotão devem dar os últimos retoques para a saída. Podem dispersar!...

A seguir aconteceu uma reunião de graduados dos dois pelotões, a fim de serem ultimados os preparativos. A noite tornou-se mais escura. As estrelas desapareceram do céu. O barulho da noite, na mata, impôs-se a todos.

Mais algumas conversas se faziam sentir, em grupos, aqui e ali, depois dos breves instantes em que toda a gente ouviu a Natureza. O tema das conversas, entretanto, começava a ser o mesmo, a operação do dia seguinte.

Começaram a dispersar-se os homens para prepararem as suas «coisas».Passaram as horas! O silêncio da noite tornou-se a constante do tempo.

*

A madrugada nasceu. Um cinzento, de névoa, marcou o despertar dos homens! Todavia, a noite teimou ainda em querer cobrir o nascer do dia! O tempo era de cacimbo, mas, nessa hora matinal, o frio apertava! Tomava-se o café.Alguns minutos depois já os homens do terceiro e quarto pelotões estavam preparados junto às viaturas aguardando ordens! Oficiais e sargentos trocavam impressões. A hora aproxima-se. Algumas GMC – «roncavam» na parada aquecendo os motores.

Surge a ordem de «subir» e toda a gente ocupa os seus lugares nas viaturas. Fortes acelerações marcam a saída da coluna rumo ao local X onde se iria desenrolar mais uma operação com o nome de código Y, empenhando as forças H e Z.

Nessa altura já o sol havia vencido a parda madrugada abraçando a terra com os seus raios quentes, num espreguiçar de amante, ciente dos seus carinhos matinais…

A poeira começou a envolver as viaturas da retaguarda da coluna, obrigando os homens a colocar no nariz os lenços do camuflado. Ao lado de cada homem a inseparável FN, que, juntamente, com o abraço dos raios solares, emprestava a todos uma sensação de conforto e segurança.

A conversa generalizou-se e os mais diversos assuntos foram focados.

O tema principal era a operação que se avizinhava. Quilómetros foram andados. A paisagem, sempre a mesma, apresentava, por vezes, um esverdeado entre dois morros que delimitavam perfeitamente uma linha de água, local, normalmente, utilizado pelos «turras» para «desafianço».Subidas e descidas eram a constante dos morros existentes ao longo do percurso, em locais propícios para uma emboscada. Somente, um observador atento se lembraria disso, porque os homens nem sequer em tal hipótese pensavam. Se surgisse o ataque, a reacção seria, certamente, instantâneo pensamento de todos estava no sítio X, onde a batida se iria processar. Portanto havia tempo de sobra para pensar em guerra. Por enquanto, a preocupação era fumar um cigarro e…deixar andar.

 

 


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publicado por fercobanco às 20:54
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Sábado, 15 de Julho de 2006
ANIVERSÁRIO
A tarde atingia o seu ponto máximo. As tonalidades avermelhadas que o Sol, a pôr-se,
emprestava ao Céu, faziam realçar o recorte das copas dos arvoredos, desenhando nessa tela imensa imagens grotescas como se um pintor surrealista delas fosse culpado.
            Em redor, a vista não alcançava os horizontes que escureciam.
            Já não era tarde. Era o princípio da noite.
            Na messe, um camarada perguntou:
            -Eh pá, que dia é hoje?
            -21!
            -…
            -21? Olha!...Hoje faço anos! - Disse um outro. - Já não me lembro se foi o Antero, se o Carvalho.Também não importa.
            Para ninguém importava quem fazia anos. O interesse pela frase, «…hoje faço anos», residia somente no pretexto do aniversariante pagar uns «copos». De viver algumas horas de maneira diferente.
            - A ideia brotou:
            - Eh pá tens que pagar qualquer coisa. Então faz-se anos e não se dizia nada? Ai o amigo!...
            - As palavras surgiram em catadupas e ficou assente que a data tinha de ser comemorada condignamente.
            O Canelas era o encarregado da messe dos oficiais. Ninguém como ele tinha jeito para a cozinha. Das suas mãos saíam bolos que causariam inveja a muitas donas de casa. Chamou-se o Canelas.Combinou-se a ementa: galinha corada com batatas fritas, fruta em calda e o bolo de aniversário. A seguir os velhos brandys e whiskys para aquecer. A festa começou logo.
            O tempo era pouco. Toda a «malta» ajudou a descascar batatas e a fritá-las. As galinhas já estavam prontas era só abrir as latas e passá-las pela frigideira. O tempo corria. Já passava da hora normal do jantar. O bolo de aniversário foi, afinal, um pudim instantâneo comprado na cantina. Saiu bem. Aliás o Canelas não deixaria que saísse mal.
            Estava em causa o prestígio do «mestre». Ele próprio dirigia as operações de cozinha. Todos os graduados «desajudavam» …O pretexto era beber umas «coisas». As piadas surgiam espontaneamente. O Carvalho contava a última história do seu Cuanhama natal. Tinha sempre uma história para contar. O Leite, de voz sui generis », lançava pela boca fora os seus «palavrões» a sublinhar esta ou aquela passagem da operação: «jantar de aniversário». O Nordeste engolia as sílabas. A malta «gozava-o». Os preparativos para o jantar à «lá minute» decorriam em bom andamento. Reinava a boa disposição. O álcool colaborava imenso. O «pato» do aniversariante não tinha voto na matéria. Era uma espécie de coluna de apoio, onde a rapaziada se encostava, de voz pastosa, deixando sair um arrastado… – Com q´em tão tu fazes anos…
            O nosso amigo lá ia respondendo:
            - É verdade…Hoje faço anos…
            E nestas respostas vinham misturados uma série de sentimentos.
            A saudade de outros aniversários vividos junto da família, dos amigos, da noiva.
            A nostalgia dessa saudade. Intimamente o aniversariante já estava arrependido de ter dito que fazia anos. Era tudo mais simples. O dia passava e no outro dia é que a lembrança surgiria. Nessa altura paciência. Já tinha acontecido. Todavia, essa confusão de sentimentos ia-se perdendo na razão directa do número de whiskys » bebidos. Uma névoa toldou-lhe os olhos.
            Uma palmada nas costas transportou o nosso amigo para o ambiente.
            - Com que então o menino hoje faz anos!...
            Um sorriso amarelo, uma batata frita metida na boca. Um «gaita» que está quente!
X
            O jantar foi servido. Comeu-se bem. Bebeu-se melhor. No fim surgiu o pudim a substituir o bolo de aniversário. Alguém se lembrou das velas. Como não havia, substituíram-se por umas velas de cera para alumiar mortos e altares. O festejado soprou. Toda a gente cantou o «parabéns a você». Algazarra. Palmas.Abraços ao «bebé do dia» que ia ficando com as costas a arder. O Bastos e o Coelho tocaram viola e cantaram. O Canelas também. A «malta» acompanhou fazendo coro. De copo na mão, o tempo passava. O sono foi tomando conta de alguns. O Zé Pedro, gordo que nem um abade, e de óculos na ponta do nariz, filosofava a um canto sobre a garota mulata que tinha em Luanda «linda como uma noite de luar».
            O Galvão, do alto dos seus quase 1,90m , dava conselhos paternais a que os óculos graduados emprestavam um ar solene.
            A pouco e pouco a reunião foi-se desfazendo. Recolhiam aos quartos.
            O aniversariante ficou até ao fim. Saiu da messe. Ergueu os braços espreguiçando-se, respirou fundo.Com movimentos vagarosos tirou um cigarro, meteu-o na boca, riscou um fósforo, acendeu o cigarro, aspirou profundamente o fumo. Gozou as delícias desse momento.
            Lentamente, deixou o fumo sair dos pulmões para a noite escura. Os contornos desenhados pelo fumo revelaram-lhe no seu subconsciente a imagem da Mãe.
            Os adultos vinte e três anos, desse Homem-rapaz , choraram…

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publicado por fercobanco às 00:47
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