Depois da explosão da mina que feriu o Teixeira, o “abre-picadas” como eu lhe chamava e após ter terminado todo aquele movimento e confusão, havia que pensar em evacuar os feridos.
Assim se fez. Um dos grupos de combate fez escolta aos feridos. Foram evacuados, para a base dessa operação, para o Cuima. Na base da serra da Kanda, onde ela terminava, ou começava, o meu grupo de combate ficou emboscado, à espera… que os “turras” se fossem certificar dos resultados obtidos.
O pelotão atingido montava a emboscada. O tempo passou. A tarde começou a cair, procurando o anoitecer. Seriam umas dezassete horas, quando o alferes mandou montar nas viaturas e regressar à base.
À noite voltaríamos ao local. Rapidamente chegámos ao Cuima. Jantou-se. Voluntários se ofereceram para regressar ao sítio onde a mina explodira. De viatura avançámos até cerca de vinte quilómetros do objectivo. Aí, apeámo-mos das viaturas. A noite era negra. Viscosa. O cacimbo não deixava ver um palmo à frente do nariz.Se4ntiamos à distância os contornos da serra da Kanda. Impressionante, de estarrecer. Negra também como a própria noite, que nos cercava., fomos progredindo nas margens da estrada. Sentindo o camarada da frente, mas quase sem o descortinarmos. Sempre a andar.Com pressa em chegar ao local onde tinha rebentado a mina. Os ponteiros do relógio de quadrante luminoso indicavam que as vinte e três horas, já tinham acontecido há vinte e cinco minutos. Levávamos umas duas horas de caminho percorrido. O cacimbo começou a levantar-se. Notavam-se, agora, os camaradas da frente.
Lembro-me que alguns caminhavam dormindo. Encostando as armas às costas do vizinho. Era uma sonolência bendita, na medida em que o cansaço não nos conseguia vencer. Expressamente proibido fumar. Lógico aliás! No entanto, talvez o fumo do cigarro nos ajudasse a vencer melhor o tempo. De repente, ouvimos nitidamente um apito longo, perto de nós. Instintivamente, deitámo-nos no chão. Ao longe um outro apito proveniente do facto de ter sido soprado um chifre de caça respondeu. Deitados no terreno, aguardámos os acontecimentos. Nada. Só a própria noite e os seus ruídos característicos nos responderam. Passaram-se cerca de quinze minutos. Levantámo-nos e a marcha continuou a caminho do objectivo. Alguns minutos decorridos, novo apito semelhante ao primeiro se ouviu. Novamente para o chão. À distância a resposta. Nessa altura já o cacimbo nos deixava olhar para o meio ambiente. Capim baixo lançava-se até à base da serra da Kanda, que ficava a uns seiscentos metros. Esse era o nosso lado esquerdo. Do lado direito, o capim ia misturar-se mais perto com as árvores. Núcleos de mata faziam desenhar, no horizonte visual, monstros indescritíveis, quais figuras fantasmagóricas de um arrepiante pesadelo.
Mais tempo se passou. Novamente em marcha.Com os nervos em frangalhos, tensos. Dominados graças a um esforço titânico.Com uma vontade louca de abrir fogo para o capim.
Os graduados tinham que se dominar e tentar dominar os soldados. O rastolhar das pequenas peças de caça provocava uma tensão arrepiante. Uma tensão que nos fez perder o sono e a noção do tempo.
…Se ao menos um cigarrinho se pudesse fumar…Acalmava. Mas nem isso. Todas as atenções eram poucas. Havia que perscrutar o meio ambiente à espera, aguardando! Os passos quase que se não ouviam. Até a respiração era controlada, de modo a que não ajudasse a revelar a nossa posição. Tudo alerta.
~ De frente vem a voz sussurrada de:”Alto”. Ninguém se apercebia, sequer, que os relógios marcavam, nesse momento, quatro horas da manhã. Havíamos chegado ao local onde explodira a mina, no princípio da tarde do dia anterior. Rapidamente, os homens distribuíram-se pelos pontos estratégicos, que limitavam o riacho seco.
Alguns ficaram de sentinela, outros tentaram dormir. Ninguém o conseguiu atrelado de água, que fizera explodir a mina ainda lá se encontrava, completamente desfeito como se um gigante possuidor de uma força poderosa, tivesse provocado o rasgar da chapa.
Tudo no mesmo sítio. Da mesma maneira. Ninguém havia visitado o local. A manhã nasceu, bonita. Os que tinham montado segurança começaram a agitar os mais cansados. Tirando-os da semi – sonolência em que se encontravam.
Na região limítrofe, foi feita uma pequena batida. A cerca de uns vinte metros do local onde nos encontrávamos, o cadáver de um “turra”. Abandonado com uma rajada de metralhadora nos intestinos. Estava encoberto pelo capim. Mais à frente e no “carreiro” que serviu para os turras s e desenfiarem, rastos de sangue demonstravam que tínhamos provocado, pelo menos, um morto e, provavelmente alguns feridos. Após essa verificação, comemos o “mata-bicho” e aguardámos as viaturas que nos viriam buscar, cerca das nove horas. Foi esta, talvez, uma das noites de maior angústia passada no norte de Angola.
Salvo erro, porque fui à consulta externa no Hospital Militar, meteram-me na mão uma guia de marcha e, no aeroporto de São Salvador, tomei lugar no Nord Atlas, que me levaria a Luanda.
Aí a expectativa era grande.Imaginem::-Ir rever Luanda.Ir lá passar uns dias.Mesmo que se tratasse de ir ao médico.Nada importava.
Só o ir ver Luanda contava.
Do horizonte surge a gigantesca figura do Nord Atlas.Faz-.se à pista.Uns metros andados, por entre o ensurdecedor barulho dos motores.
A velocidade que abranda.Docemente,para no parque de estacionamento.A poeira levantada pelo "monstro", começa a poisar sobre nos.Todos se sacode.Param os motores.Abrem-se às portas e,detrás, sai a rapaziada.Camaradas que vinham de Luanda para aquela região, regressando às suas unidades, depois de umas férias, ou por qualquer outro motivo, até semelhante ao que me levava a Luanda.
Depois é a tripulação do " cama-couve-do-ar", que abandona a carlinga.Trocam-se sdaudações.Aqui e ali rodas de militares que conversam.
Para um observador atento,as expressões daqueles que falavam de Luanda diziam tudo.Falavam por si.Deixavam antever as belas manhãs de praia e os passeios nocturnos ou o "fino" da Biker, ou dfo Polo Norte, ou do "rafiné" lanche das cinco na Versailles, ou ainda o esquecimento nos braços de uma mulher.
O quadro tornava-se num aperitivo para os que iam, ou no sabor desesperado do desejo para os que não iam.
Diverso pessoal procedia à descarga do Nord Atlas. Uma carga absolutamente idescritivel saía da "barriga" do avião.Ou eram frescos, ou carnes, ou jornais, ou material de guerra.Um "brique à braque" extraordinário se foi amontoando nas GMC e nos jipões, que ali se encontravam.
Depois era a partida: abraços, recomendações. As portas, que se fechavam, davam origem ao levantar de braços a dizerem adeus. Aqui ou além, uma correcta continência, cumprimentava este ou aquele graduado.Simultâneamente os turbo-reactores são experimentados em conjunto com os motores do Nord. Faz-se à pista.No rosto dos que ficam o intenso desejo de irem.Acelerações fortes definem a partida. A pista corre debaixo de nós. O 2focinho" do avião levanta-se para o ar.Lá em baixo tudo foge para trás.Tudo fica pequeno. Os homens e as casas.As nuvens são agora a meta.Lá dentro um barullho ensurdecedor, misturado com os mais diversos cheiros.No exterior as nuvens sucedem-se.Há que esperar. Lá em baixo vão surgindo povoações, sanzalas abandonadas, pantanos, rios que serpenteiam por entre a planície, morros aqui e além, extensões enormes de mata, extensões enormes de capim, estradas de um castanho-terra descrem curvas e contracurvas.Umas vezes desaparecem na mata, para voltarem a aperecer à frente.Dentro do Nord já se conversa.Fuma-se.Passa-se o lenço pelo rosto limpando o suor.O suor provocado pelo calor.Há quem enjoe.Há até quem vomite.Pergunta-se aos tripulantes:- Oh, amigo!Falta muito?...
Surge lá em baixo uma configuração diferente do terreno. É um terreno cor de cinza.Logo alguém diz:-Estamos sobre o litoral.Daqui a pouco vemods o mar.
E dando razão a quem falou, o mar beija as areias da praia lá ao fundo, as ondas repetem-se, como se dentro desse enorme "lago" alguém tivesse deixado cair uma gigantesca pedra.Em determinados pontos, conseguimos ver o fundo do oiceano juntà praia.Na linha do horizonte mistura-se o azul do mar com o cinzento esbranquiçado das nuvens, não se distingindo onde acaba o mar e começa o céu.
Por baixo de nós a costa.Sempre a costa, até Luanda.
- Olha ali!
E aponta-se. Todos olham para a referência dada pelo indicador.Lá está o Cacuaco.Depois algumas zonas escarpadas sobre o mar.Por fim surgem os bairros periféricos do aeroporto.Antes, havíamos sobrevoado a Fortaleza, a Baía, a Ilha, a Marginal e os prédios. Os prédios de ferro e cimento. DCepois surge o no smoking."Não fumar".O furriel mecânico, diz:-Não saiam dos vossos lugares.Lugares de "suma-pau".
Lugares que eram acima das caixas. Lugares em bancos corridos de lona de um e doutro lado do avião.
Começamos perdendo altitude a caminho da pista. Os ouvidos zunem.A diferença d e presão causa o fenómeno.A pista aproxima-se, negra, de asfalto.Uma louca correria.Paragem junto à splacas da base aérea.Depois as formalidades de desembarque.Formalidades puramente militares.
*
Um táxi que espera...Para onde?...
-Leve-me...
Lá dizemos o local, e aí vamos desfilando pelas ruas da cidade.Primeiro a Avenida do Aeroporto.Depois a Mutamba, loucpomovimento.Atravessamos a <"capital" de Luanda.Bichas de gente à espera do auto carro.E olhamos.Olhamos para o ar.Para ver os prédios altos.E surgem os polícias sinaleiros empertigados na "peanha".Com movimentos enérgicos a dirigirem o trânsito.Ruído de gentr que atravessa as ruas, de automóveis que tyravam, dos ardinas a anunciarem:
- A Provincia dÀngola...Olha o Comércio...Oh patrão sai uma graxa?...
Pensei que reparassem em mim, no meu camuflado.Ninguém vê.Todos olham para dentro.De boca aberta, vejo o perfil de uma mulher bonita.Uma mulher que atravessa a rua.Num passo elegante.Altiva.DE negros cabelos caídos sobre os ombros.Alguém lhe diz um "piropo".Outro alguém ri....
Acordo de repente.Do meu sonho acordado.E dá-me vontade de ngritar, e a todos dizer:
-Vim do Norter.Estou em Luanda.Olhem para mim.Vejam como sou feliz!...
Rompeu a manhã.Com o nascer do dia, começou a notar-se o movimento dos homens prontos a seguir viagem.
Todos sabíamos que no local onde nos encontrávamos, já tinham sido detectados movimentos dos "turras".Aliás, o objectivo era estabelecer contactos.Se possível flagelá-los.
Com mira nessa ideia, começámos a nossa deslocação sempre protegidos pelas copas do arvoredo, sempre na orla da mata de maneira que à distância não pudéssemos ser descobertos.Entre todo o pessoal, instintivamente, estabeleceram-se distâncias de modo a que uma rajada de metralhdora não pudesse causar muitas baixas.
O camuflado misturava-nos com o meio ambiente.Fazia-nos passar despercebidos.
Aproximamo-nos do limite da floresta.Ao longe, os morros repetiam-se.Nas "linhas de água" a vegetação era mais verde.No cume, de alguns deles,havia denso arbusto que se espriguiçava pela encosta, misturando-se com as árvores.Espectáculo quase sempre igual até onde os nossos olhos alcançavam."Antro" inimigo a protegê-los extraordináriamente.
Para além disso, todo o pessoal tinha consciência de que era necessário uma camuflagem eficiente, aproveitando a configuração do terreno.
A progressão continuou, calma, precisa,segura.Na vertente de um outro morro, que nesse momento comecáramos a descer, viam-se ao fundo as paredes de "adobo" do que havi sido uma "sanzala".
Algumas dessas "cubatas" ainda tinham o telado de capim.Temeu-se a possibilidade de que ali estivessem aquartelados os "turras".
Com calma, os homens obedeceram aos gestos do comandante dos grupos de combate e as secções começaram a progredir para um envolvimento da "sanzala".
Os sessenta homens, de armas aperradas, foram progredindo no terreno com todas as cautelas necessárias.Pouco a pouco a distância que nos separava da aldeia era vencida.
A cerca de unstrinta metros do capim, todos pararam, de dedo no gatilho, com os olhos postos nas "ruas" da aldeia, prontos a fazeren fogo, s e a ordem surgisse.
Algumas palmeiras limitavam a "sanzala", junto ao local mais próximo da "linha de água".Para ali convergiam,também, as nossas atenções.
Escassos minutos de espera, num silêncio total.Só o bater das folhas das árvores e os insectos eram ouvidos.Nada mais!O resto era tudo silêncio.Um silêncio que normalmente precede o tiroteio.
O comandante levanta o braço, e as secções da frente comecaram a avançar com os homens agachados, mas prontos a abrirem fogo.Uma pequena corrida e um dos soldados sai do capim, para a protecção da primeira cubata sem tecto.Outrop lhe seguiu o exemplo.Ainda outro e mais outro.Enquanto uns saíam do capim para dentro da aldeia, os outros iam, com movimentos furtivos, avançando de cubata para cubata, com os nervos tensos.DEbaixo de uma excitação sempre crescente.
Lá no meio da sanzala, notou-se a pegade de um homem, pegada muito recente.Noutros lugares, outras de crianças, de homens e de mulheres certamente.
A tensão, provocada pela expectativa, era cada vez maior.De repente, surge a correr de uma das cubatas, num cacarejar maldito, uma galinha.Instintivamente, as armas viraram-se para o local.Um dos homens avançou.Lá dentro uma criança preta, de ventre dilatado e ranho no nariz, olhava para nós.
A imundície do local obrigava-nos a fechar os narizes, enjoados.Excrementos de aniomais domésticos em pestavam o ar.Era um rapaz.Um rapaz que aparentava uns cinco anos.Estendeu-nos os bracitols magros, cobertos por crostas de porcaria cinzenta.Todo ele perecia um esqueleto revestido de pele.A única nota discordante desse apectocadavérico era o disforme e grande ventre, que ostentava com dificuldade.Na negra cabecita os vermes e os parasitas passeavam.
Tudo isto se fazia acompanhar do zumbido das moscas que ora tocavam pousando na porcaria, ora voavam para cima de nós.
Entretanto, lá for, continuava a batida à procura de mais gente.A linha de água, que marginava a aldeia, tinha recentes pegadas.Um caudal não muito grande era atravessado por um tronco que ligava as duas margens desse riacho.
Mais pegadas demonstravam que ali tinham eestado homens.Uma batida do outro lado da margem não revelou ninguém.
Progrediu-se, então, na margem esquerda do riacho, saindo da "sanzala" a caminho de uma mata mais densa, um carreiro ligava-a a essa mata.DEvidoàs chuvas do dia anterior, a lama abundava.Enquanto uma secção reforçada ficou a guardar a "sanzala", o resto do pessoal caminhava lentamente e com precaução a caminho do arvoredo.Uns numa margem, outros noutra.
Desembocámos numa clareira interior, com plantações de mandioca, ginguba e tabaco, além d e milho.Eram lavra da aldeia de que os "turras" se serviam para os reabastecimentos.
Tal local tinha servido, com certeza, de refúgio ao inimigo.As populações da "sanzala" teriam fugido, ao notarem a nossa aproximação, deixando uma criança abandonada.Assim acontecia, com frequência.Não era caso "virgem".
Ali permanecenos mais dois dias, transformando a "sanzala" em improvisada basede operações dce onde partíamos para diversos reconhecimentos.
A tensão era grande, já porque essa guerra, psicológica, o justificava.Em todos, a certeza de que o local foi base dos "turras".A aproximação, os vestígios deixados pelo inimigo, a criança abandonada, tudo isso nos levava a um estado de alma indescritivel.
Aquela criança abandonada transformou-se para nós em mais um motivo de ódio pelos "turras".
Estávamos em guerra há poucos anos.Ainda se desconheciam pormenores que hoje são lugres comuns nesta guerre imposta.
E a verdade é que,a maior parte dos homens que compunham a minha unidade ou eram de Angola, ou estavam cá radicados desde crianças.
O pretito, que encontrámos,comeu sofregamente as bolachas e o concentrado de figo e de "ginguba", que fazia parte das rações de combate.De olhos Esbugalhados pela fome, aguardando avaramente o que lhe faltava comer, olhava para nós.De nariz sujo e olhos lacrimejantes.Por vestuário só um calção qiue devereia ter sido cinzento, mas que agora, todo roto e cheio de goirdura, era completamente negro.
Durante os dias que ali nos mantivémos, nem um único contactoi s eestabeleceu com o inimigho ou com quem quer que fosse.
Na retirada a aldeia foi destruida.A "lavra" também.Queimadasas cubatas para que não voltassem a servir de abrigo aos "turras".
Àdistância quedámo-nos a olhar.Em todos nós uma revolta interna surgiu contra quem era capaz de abandonar à sua sorte uma criança de cinco anos.
O próprio miúdo, at´
onito,deixava transparecer no olhar uma interrogação, que nós adultos não conseguimos decifrar.
As viaturas chegaram ao lugar previamente combinado. Daí para a frente tudo poderia acontecer. O pessoal desceu e preparou-se para dar início à caminhada.
Estávamos a cinquenta quilómetros da nossa base. O meio ambiente, aqui, apresentava-se diferente. A estrada, onde as viaturas tinham estacionado, marginava um morro, quase no seu vértice, lá ao fundo a paisagem era surpreendente. A configuração do terreno fazia os homens sentirem-se pequenos perante a imensidade da obra de Deus. Começámos a descer o morro depois da estrada ter sido abandonada. Descíamos com a ajuda do capim tão alto como os homens. Chegámos ao fundo. Seriam umas nove a dez horas de uma manhã que apresentava o sol na sua plenitude. Os homens suavam. O calor começava a fazer – se sentir com mais intensidade. Um dos homens levou a boca ao cantil. Como se fosse um sinal combinado, alguns imitaram o gesto. Toda a gente se encontrava parada aguardando instruções.
Os dois comandantes de pelotão conferenciavam. Passados alguns minutos as ordens surgiram num… «vamos por aqui» …
Instintivamente os homens, agrupados por secções, começaram a formar uma longa «bicha» com intervalos mais ou menos regulares entre todos. A enorme fila começou a palmilhar o terreno constituído por uma planície, em direcção a um ponto determinado que tal como se fosse os olhos de um hipnotizador parecia atrair aquela força de combate. Ao longe divisavam-se montes cujas bases apresentavam florestas densas, quais couraças, impenetráveis aos mais íntimos segredos.
Num passo elegante com a arma colocada debaixo do braço, os homens formavam um todo com o pensamento posto na operação que acabara de ter início no momento em que fôramos «largados» na estrada.
A disposição, de um modo geral, era estupenda, mas, com todos os sentidos alerta para o que pudesse surgir.
Lentamente, a coluna foi-se aproximando dos morros. Começou então a escalada do primeiro. Para um observador, colocado à distância, que no momento olhasse para a encosta, nenhum movimento de tropas se registaria na sua retina porquanto os camuflados faziam com que os homens em andamento se confundissem com a Natureza.
A subida continuou à custa de grandes esforços sísmicos tempos em tempos os homens levavam à boca o cantil, bebendo sofregamente a água, que havia perdido o seu sabor, em virtude dos comprimidos desinfectantes que se haviam dissolvido água era quente, quente em virtude do sol que nesse momento abrasava. Sol impiedoso que fazia os homens suar nesse percurso a caminho do ponto X, onde se presumia existir um «quartel-general e de reabastecimentos» terrorista.
Progressivamente o morro era escalado e começaram então a notar-se, recortados contra o horizonte, as silhuetas dos componentes daquele grupo de combate.
Depois de todos terem subido, os comandantes dos dois pelotões ordenaram um pequeno «alto» para descanso. Alguns homens tomaram posições de defesa imediata, a fim de velarem pela segurança dos seus camaradas.
No «platô» do morro, a uns duzentos metros do local onde nos encontrávamos, existia uma mata que se prolongava pela encosta contrária à que havíamos escalado.
Foi para aí que as atenções convergiram, transparecendo no olhar de quase todos os homens o respeito que nos impunha aquele arvoredo.
No entanto, de um modo geral, a calma transparecia em todas as atitudes dos sessenta e poucos homens.
Alguns minutos de conversa marcaram o tempo de descanso numa primeira fase da nossa caminhada.
Entretanto, o Céu cobria-se de nuvens prenunciadoras de chuva. Nuvens cinzentas. Nuvens que, impelidas pela força do vento, tapavam os raios do sol, de um sol quente de Angola. Esse movimento das nuvens lembrava ocorrer de uma cortina de teatro a fechar o primeiro acto daquela cena, em que eram principais actores seis dezenas de soldados.
O ambiente na messe de sargentos era de verdadeira boa disposição. Trocavam-se impressões sobre os mais diversos e variados assuntos. De repente, há um «cochichar» entre a «malta» e começa a correr o boato de uma operação a realizar no outro dia. Lá fora, a noite caía sobre o acampamento começando a habitual ronda entre os postos de sentinela no meio da «algarviada» dos insectos.
- Qual é o pelotão?
- Para onde é a ida?
- Actuaremos ao nível de Infantes ou de Artilheiros?
- Bem meus amigos, constou-me! Nada há de concreto!
É nesse momento que a ordenança entra e diz:
- O nosso capitão quer os homens do terceiro e quarto pelotões reunidos dentro de um quarto de hora em frente à secretaria, na parada. Manda chamar também o nosso primeiro-sargento!
- Ora ai está! Eu não vos disse? É certo. Temos operação.Os comandantes de secção daqueles pelotões saíram em direcção às casernas.
- Atenção ao pessoal do terceiro e quarto pelotões! Formar em frente às camaratas…T`á andar!...
- Mexe-me os pés rapaz…
- Sim senhor meu sargento, já t`ou a ir…
E a algazarra surge. Os soldados trocam impressões…
- O que será?
- Temos trabalhinho…Cheira-me a esturro…
- Oh pá. Tá-se mesmo a ver que temos passeio. É como «gente grande» …Vais ver…
- Pois é… Vamos ter «farra» …
A conversa alastrava-se…Surgiram as mais diversas hipóteses sobre o que se estaria passando…No entanto, o pessoal lá foi formando, e, cinco minutos depois, Toda a gente se encontrava em frente das casernas, logo a seguir chegavam os comandantes dos dois pelotões e o capitão…
- Atenção! Sentido!...Dá licença meu capitão?
- Sim senhor, mande descansar!
- Descan…sar!...À vontade!
Pela cara daqueles homens passou uma expressão de interrogação. Que estaria para acontecer? Certamente que mais uma operação se iria realizar.
E o capitão começou a falar:
Meus caros: amanhã temos festa! O pessoal deve preparar-se para uma operação de alguns dias. Vamos fazer uma batida no sítio X. Como sempre, lembro-vos a vossa condição de Artilheiros. Como sempre, conto convosco! Depois, irão receber as rações de reserva e as munições…A saída está prevista para esta madrugada. Os condutores devem fazer a verificação das viaturas. O nosso furriel Coelho proceda aos abastecimentos de gasolina e gasóleo de todas as viaturas. Os senhores comandantes de pelotão devem dar os últimos retoques para a saída. Podem dispersar!...
A seguir aconteceu uma reunião de graduados dos dois pelotões, a fim de serem ultimados os preparativos. A noite tornou-se mais escura. As estrelas desapareceram do céu. O barulho da noite, na mata, impôs-se a todos.
Mais algumas conversas se faziam sentir, em grupos, aqui e ali, depois dos breves instantes em que toda a gente ouviu a Natureza. O tema das conversas, entretanto, começava a ser o mesmo, a operação do dia seguinte.
Começaram a dispersar-se os homens para prepararem as suas «coisas».Passaram as horas! O silêncio da noite tornou-se a constante do tempo.
*
A madrugada nasceu. Um cinzento, de névoa, marcou o despertar dos homens! Todavia, a noite teimou ainda em querer cobrir o nascer do dia! O tempo era de cacimbo, mas, nessa hora matinal, o frio apertava! Tomava-se o café.Alguns minutos depois já os homens do terceiro e quarto pelotões estavam preparados junto às viaturas aguardando ordens! Oficiais e sargentos trocavam impressões. A hora aproxima-se. Algumas GMC – «roncavam» na parada aquecendo os motores.
Surge a ordem de «subir» e toda a gente ocupa os seus lugares nas viaturas. Fortes acelerações marcam a saída da coluna rumo ao local X onde se iria desenrolar mais uma operação com o nome de código Y, empenhando as forças H e Z.
Nessa altura já o sol havia vencido a parda madrugada abraçando a terra com os seus raios quentes, num espreguiçar de amante, ciente dos seus carinhos matinais…
A poeira começou a envolver as viaturas da retaguarda da coluna, obrigando os homens a colocar no nariz os lenços do camuflado. Ao lado de cada homem a inseparável FN, que, juntamente, com o abraço dos raios solares, emprestava a todos uma sensação de conforto e segurança.
A conversa generalizou-se e os mais diversos assuntos foram focados.
O tema principal era a operação que se avizinhava. Quilómetros foram andados. A paisagem, sempre a mesma, apresentava, por vezes, um esverdeado entre dois morros que delimitavam perfeitamente uma linha de água, local, normalmente, utilizado pelos «turras» para «desafianço».Subidas e descidas eram a constante dos morros existentes ao longo do percurso, em locais propícios para uma emboscada. Somente, um observador atento se lembraria disso, porque os homens nem sequer em tal hipótese pensavam. Se surgisse o ataque, a reacção seria, certamente, instantâneo pensamento de todos estava no sítio X, onde a batida se iria processar. Portanto havia tempo de sobra para pensar