Quarta-feira, 18 de Abril de 2007
De ventre dilatado...Parasitas e vermes na cabeça...

Rompeu a manhã.Com o nascer do dia, começou a notar-se o movimento dos homens prontos a seguir viagem.

Todos sabíamos que no local onde nos encontrávamos, já tinham sido detectados movimentos dos "turras".Aliás, o objectivo era estabelecer contactos.Se possível flagelá-los.

Com mira nessa ideia, começámos a nossa deslocação sempre protegidos pelas copas do arvoredo, sempre na orla da mata de maneira que à distância não pudéssemos ser descobertos.Entre todo o pessoal, instintivamente, estabeleceram-se distâncias de modo a que uma rajada de metralhdora não pudesse causar muitas baixas.

O camuflado misturava-nos com o meio ambiente.Fazia-nos passar despercebidos.

Aproximamo-nos do limite da floresta.Ao longe, os morros repetiam-se.Nas "linhas de água" a vegetação era mais verde.No cume, de alguns deles,havia denso arbusto que se espriguiçava  pela encosta, misturando-se com as árvores.Espectáculo quase sempre igual até onde os nossos olhos alcançavam."Antro" inimigo a protegê-los extraordináriamente.

Para além disso, todo o pessoal tinha consciência de que era necessário uma camuflagem eficiente, aproveitando a configuração do terreno.

A progressão continuou, calma, precisa,segura.Na vertente de um outro morro, que nesse momento comecáramos a descer, viam-se ao fundo as paredes de "adobo" do que havi sido uma "sanzala".

Algumas dessas "cubatas" ainda tinham o telado de capim.Temeu-se a possibilidade de que ali estivessem aquartelados os "turras".

Com calma, os homens obedeceram aos gestos do comandante dos grupos de combate e as secções começaram a progredir para um envolvimento da "sanzala".

Os sessenta homens, de armas aperradas, foram progredindo no terreno com todas as cautelas necessárias.Pouco a pouco a distância que nos separava da aldeia era vencida.

A cerca de unstrinta metros do capim, todos pararam, de dedo no gatilho, com os olhos postos nas "ruas" da aldeia, prontos a fazeren fogo, s e a ordem surgisse.

Algumas palmeiras limitavam a "sanzala", junto ao local mais próximo da "linha de água".Para ali convergiam,também, as nossas atenções.

Escassos minutos de espera, num silêncio total.Só o bater das folhas das árvores e os insectos eram ouvidos.Nada mais!O resto era tudo silêncio.Um silêncio que normalmente precede o tiroteio.

O comandante levanta o braço, e as secções da frente comecaram a avançar com os homens agachados, mas prontos a abrirem fogo.Uma pequena corrida e um dos soldados sai do capim, para a protecção da primeira cubata sem tecto.Outrop lhe seguiu o exemplo.Ainda outro e mais outro.Enquanto uns saíam do capim para dentro da aldeia, os outros iam, com movimentos furtivos, avançando de cubata para cubata, com os nervos tensos.DEbaixo de uma excitação sempre crescente.

Lá  no meio da sanzala, notou-se a pegade de um homem, pegada muito recente.Noutros lugares, outras de crianças, de homens e de mulheres certamente.

A tensão, provocada pela expectativa, era cada vez maior.De repente, surge a correr de uma das cubatas, num cacarejar maldito, uma galinha.Instintivamente, as armas viraram-se para o local.Um dos homens avançou.Lá dentro uma criança preta, de ventre dilatado e ranho no nariz, olhava para nós.

A imundície do local obrigava-nos a fechar os narizes, enjoados.Excrementos de aniomais domésticos em pestavam o ar.Era um rapaz.Um rapaz que aparentava uns cinco anos.Estendeu-nos os bracitols magros, cobertos por crostas de porcaria cinzenta.Todo ele perecia um esqueleto revestido de pele.A única nota discordante desse apectocadavérico era o disforme e grande ventre, que ostentava com dificuldade.Na negra cabecita os vermes e os parasitas passeavam.

Tudo isto se fazia acompanhar do zumbido das moscas que ora  tocavam pousando na porcaria, ora voavam para cima de nós.

Entretanto, lá for, continuava a batida à procura de mais gente.A linha de água, que marginava a aldeia, tinha recentes pegadas.Um caudal não muito grande era atravessado por um tronco que ligava as duas margens desse riacho.

Mais pegadas demonstravam que ali tinham eestado homens.Uma batida do outro lado da margem não revelou ninguém.

Progrediu-se, então, na margem esquerda do riacho, saindo da "sanzala" a caminho de uma mata mais densa, um carreiro ligava-a a essa mata.DEvidoàs chuvas do dia anterior, a lama abundava.Enquanto uma secção reforçada ficou a guardar a "sanzala", o resto do pessoal caminhava lentamente e com precaução a caminho do arvoredo.Uns numa margem, outros noutra.

Desembocámos numa clareira interior, com plantações de mandioca, ginguba e tabaco, além d e milho.Eram lavra da aldeia de que os "turras" se serviam para os reabastecimentos.

Tal local tinha servido, com certeza, de refúgio ao inimigo.As populações da "sanzala" teriam fugido, ao notarem a nossa aproximação, deixando uma criança abandonada.Assim acontecia, com frequência.Não era caso "virgem".

Ali permanecenos mais dois dias, transformando a "sanzala" em improvisada basede operações dce onde partíamos para diversos reconhecimentos.

A tensão era grande, já porque essa guerra, psicológica, o justificava.Em todos, a certeza de que o local foi base dos "turras".A aproximação, os vestígios deixados pelo inimigo, a criança abandonada, tudo isso nos levava a um estado de alma indescritivel.

Aquela criança abandonada transformou-se para nós em mais um motivo de ódio pelos "turras".

Estávamos em guerra há poucos anos.Ainda se desconheciam pormenores que hoje são lugres comuns nesta guerre imposta.

E a verdade é que,a maior parte dos homens que compunham a minha unidade ou eram de Angola, ou estavam cá radicados desde crianças.

O pretito, que encontrámos,comeu sofregamente as bolachas e o concentrado de figo e de "ginguba", que fazia parte  das rações de combate.De olhos Esbugalhados pela fome, aguardando avaramente o que lhe faltava comer, olhava para nós.De nariz sujo e olhos lacrimejantes.Por vestuário só um calção qiue devereia ter sido cinzento, mas que agora, todo roto e cheio de goirdura, era completamente negro.

Durante os dias que ali nos mantivémos, nem um único contactoi s eestabeleceu com o inimigho ou com quem quer que fosse.

Na retirada a aldeia foi destruida.A "lavra" também.Queimadasas cubatas para que não voltassem a servir de abrigo aos "turras".

Àdistância quedámo-nos a olhar.Em todos nós uma revolta interna surgiu contra quem era capaz de abandonar à sua sorte uma criança de cinco anos.

O próprio miúdo, at´

onito,deixava transparecer no olhar uma interrogação, que nós adultos não conseguimos decifrar.

 


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publicado por fercobanco às 23:34
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