Quarta-feira, 12 de Abril de 2006
Um sorriso na morte

 

Os dias corriam calmamente no acampamento. As metamorfoses eram continuas.Com a boa vontade do pessoal, iam surgindo os alicerces de instalações que faziam inveja a muitos dos que nos visitavam. Era uma moradia que se cimentava. Era a messe de sargentos que tomava forma, como bungalow tipicamente tropical forrado a capim, com uma mesa em forma de ferradura. Eram as instalações do parque de automóveis que se iam adaptando conforme as necessidades.

            Respirava-se entusiasmo. Toda a gente trabalhava de boa vontade para que o acampamento fosse tomando forma de coisa habitável. A par de tudo isso, as escoltas e as pequenas reparações continuavam. Certo dia, o 4º pelotão recebe ordens para escoltar uma viatura de obras públicas que, transportando pessoal civil, andava na estrada a fazer reparações.

            Seriam talvez umas cinco horas da manhã, quando o pelotão se pôs em marcha para escoltar a viatura das obras públicas e o respectivo pessoal.

            Saímos do acampamento. A manhã era cinzenta como quase todas as manhãs daquela época. Uma manhã igual a tantas outras. A estrada estava coberta de pó, daquele pó que se entranha nos ouvidos, no nariz e na garganta. Toda a gente levava o rosto embuçado pelos lenços, que protegiam de certo modo daquela poeirada já que os olhos iam protegidos com óculos próprios. Óculos do exército. A coluna avançava calmamente. Toda a gente conversava, ria, fumava. Toda a gente fazia o possível por passar o tempo da melhor maneira. Sem dar pela sua marcha, descontraidamente.

            Na GMC da frente seguia uma secção que era comandada pelo Galvão. O «gigante» como era conhecido. Devo dizer que o Galvão media cerca de 1, 90 m.

            O ambiente, à volta, era o mesmo de sempre. Capim amarelento, corroído pelo sol que queima, por um sol que aquece verdadeiramente e que faz suar.

 

            A paisagem de momento para momento sofria contínuas alterações. Ou era uma planície que se atravessava, ou, de repente, surgia um morro que parecia uma sentinela vigilante. Após o morro, quase sempre acontecia uma descida e, imediatamente, uma subida. Por vezes íngreme. Outras vezes, suave. Mas, sempre ladeada de montes e, ao fundo, mata. Daquela mata cerrada. Mata própria do Norte.

            Seriam talvez umas dez horas de uma manhã já quente quando a coluna parou. Toda a gente foi esticar as pernas e tratar de outros assuntos. Seguidamente, a coluna pôs-se em andamento. À frente e, voluntariamente, tinha-se instalado um soldado negro sobre um dos estribos da GMC.

            Atento à estrada.Com o intuito de verificar se por acaso não estaria o trilho normal transfigurado.Diferente.Com vestígios de ter sido mexido. Isso seria um sinal, um sinal de que existia mina. A tal panela preta que, ao rebentar, provocava sempre estragos.

            Todavia, calmamente, a coluna ia avançando com olhos postos na estrada.

            Atento ao mais pequeno pormenor, o tal soldado, ia olhando para a estrada. Quando tinha dúvidas, mandava parar. Procedia-se, então, a uma verificação in loco. Se as suspeitas não se confirmassem, a coluna retomava o andamento. Numa dessas alturas, o comandante de pelotão tomou lugar no outro estribo da GMC e a coluna prosseguia devagar. Sempre vagarosamente.

            Surge pela frente uma planície totalmente coberta de capim, o tal capim amarelo e cheio de pó. Lá ao fundo divisava-se um pequeno pontão. Um insignificante pontão de madeira. A GMC da frente embica em direcção ao pontão sempre sujeita à verificação do comandante da coluna e do tal soldado negro. A coluna pára antes de atravessar o pontão. Alguns homens descem para irem verificar se, por acaso, haveria terra remexida à entrada da ponte. Nada.Tudo OK, diz um deles.

            Todos sobem e a marcha continua. Cerca de cem metros à frente, uma explosão! Gritos! Um espesso fumo preto! Mais gritos! Confusão! Ordens gritadas. Ordens de comando. Toda a gente nas valetas. A GMC, com o focinho rasgado como se fora um esgar de dor. Corpos na estrada. O tal soldado desmaiado com o corpo coberto de estilhaços, cheio de sangue. Imediatamente foi socorrido. Alguém pegou nele e o meteu dentro de uma outra GMC. No local ficaram duas secções e outras duas escoltaram o ferido até São Salvador. O enfermeiro, que seguia na coluna, prestava assistência ao soldado ferido. O sangue começara a inundar-lhe o camuflado. Simultaneamente, como se todos estivessem combinados, o silêncio desceu sobre a GMC. Só o barulho do motor se fazia ouvir. Foi nesse momento que o soldado negro deu a vida. Foi nesse momento que ele a perdeu. Inconsciente.Sem ter dado acordo de si. Morreu.Morreu mas com um sorriso nos lábios. Um sorriso que talvez traduzisse a satisfação do dever cumprido, alto sacrifício – o da própria vida.


sinto-me:

publicado por fercobanco às 00:56
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2 comentários:
De joaquim Varanda a 1 de Maio de 2006 às 01:32
Caro Amigo
Estive a ler o teu blog GOSTEI, com o sentir de quem por tal passou, não tinha GMC mas foi a BERLIET que ficou, com o focinho rasgado como se fora um esgar de dor.




De Edmundo a 1 de Maio de 2006 às 01:37
amigo Cobanco,
Foi com imenso prazer que estive em teu
Blog, vejo que fazes um trabalho bonito.Continua teu bom trabalho


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